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Lula abre portas, mas declarações pró-Rússia podem desafiar acordos comerciais com aliados

O presidente recoloca o Brasil no jogo internacional, firma acordos comerciais e atrai investimentos, mas as manifestações de apoio ao regime de Vladimir Putin contrastam com sua luta pela democracia e geram reação de aliados no exterior

Até o momento, Luiz Inácio Lula da Silva tinha conseguido trazer o Brasil de volta ao palco internacional num prazo recorde e com grande sucesso. Entre o período eleitoral, a posse e os três primeiros meses de governo, encontrou-se com os principais chefes de governo mundiais. A recepção favorável foi um sinal de prestígio do presidente e também reafirma a importância do Brasil. O mundo depende do País para avançar em temas como meio ambiente, segurança alimentar e erradicação da pobreza. Lula parece o líder certo para o momento. Mas declarações fora do tom do mandatário têm gerado atritos com parceiros do Brasil e podem, no limite, prejudicar negociações comerciais e interesses nacionais.

O maior problema se relaciona ao conflito na Ucrânia. Desde que foi invadida pela Rússia em fevereiro do ano passado, a nação europeia vive um drama humanitário e mobiliza a comunidade internacional em prol de seu legítimo direito de autodefesa. O governo já se posicionou na ONU, ao lado de 143 de países, condenando a agressão da Rússia e pedindo a retirada das suas tropas. Mas Lula contrariou essa própria posição oficial afirmando na sua passagem pelos Emirados Árabes Unidos, no dia 15, uma posição polêmica: a de que o país invadido é tão responsável pela agressão quanto o invasor. Pior: responsabilizou os EUA e a Europa pelo conflito, por estarem ajudando os ucranianos a se defenderem. “O presidente Putin não toma a iniciativa de parar. Zelensky não toma a iniciativa de parar. A Europa e os EUA continuam contribuindo para a continuação desta guerra. Temos que sentar à mesa e dizer para eles: ‘Basta’”, disse Lula. Recentemente, já havia sugerido que o presidente ucraniano “não pode querer tudo” e que poderia ser obrigado a ceder a Crimeia, ocupada ilegalmente desde 2014.

VITÓRIA O chanceler russo Sergei Lavrov no Itamaraty na segunda-feira, 17: sinal de apoio em meio ao isolamento (Crédito:Ueslei Marcelino)

As declarações irritaram EUA e a União Europeia, parceiros vitais do Brasil, que responderam na última segunda-feira. O porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, disse que a postura do brasileiro sobre a guerra é uma “repetição automática da propaganda russa e chinesa” e “profundamente problemática”. Peter Stano, porta-voz para Assuntos Externos da União Europeia, enfatizou que a Rússia é a “única responsável” pela guerra no Leste Europeu. “Não há questionamentos sobre quem é o agressor e quem é a vítima. Os EUA e a União Europeia trabalham juntos, como parceiros de uma ajuda internacional. Estamos auxiliando a Ucrânia em exercícios para legítima defesa”, disse.

REAÇÃO Manifestantes protestam contra a visita de Lavrov em frente ao Consulado da Rússia em São Paulo, na segunda-feira (Crédito:Aloisio Mauricio)

Contou para o desconforto o fato de que na própria segunda o governo havia recebido com pompa em Brasília o chanceler russo, Sergei Lavrov, em um giro na região que incluiu Nicarágua, Venezuela e Cuba. “As visões do Brasil e da Rússia são similares em relação aos acontecimentos que ocorrem no mundo e estamos atingindo uma ordem mundial mais justa, correta, baseada no direito e isso nos dá uma visão de mundo multipolar”, disse o diplomata. A concordância de posições não foi contestada pelo governo brasileiro. A acolhida calorosa foi entendida como um respiro para o regime de Vladimir Putin, que está isolado no cenário externo e conta com pouquíssimos aliados (a China é um deles). Num dos sinais mais eloquentes, o Tribunal Penal Internacional emitiu um mandado de prisão contra o russo por deportar à força milhares de crianças ucranianas para o seu país, uma aberração que se soma a crimes de guerra já denunciados pela ONU como os ataques a civis e à infraestrutura energética do vizinho, assassinatos intencionais, tortura e violências sexuais.

Esse aparente alinhamento ao interesse russo (e chinês, por tabela), ainda que desmentido pelo chanceler brasileiro Mauro Vieira, esvaziou uma das pretensões de Lula: servir como mediador do conflito. O ex-chanceler Celso Lafer aponta que a credibilidade do Brasil está sendo comprometida pela benevolência em relação à Rússia e pela escassa boa vontade em relação à Ucrânia. “As recentes manifestações do presidente, assim como a vinda do chanceler russo, expressam seletividade e carência de equidistância, o que indica que a geopolítica do presidente não está no caminho certo”, afirma. Para ele, isso diminui o capital diplomático e a capacidade de desempenhar um papel construtivo. Além dos blocos ocidentais, também a Ucrânia passa a ter razões para não confiar no brasileiro como negociador isento em um eventual “clube de países amigos”. Lula já tentou emplacar esse grupo em várias ocasiões, até agora sem sucesso. Na própria visita a Xi Jinping, era esperada uma declaração nesse sentido, que não ocorreu. Em Brasília, essa pretensão de protagonismo na resolução do maior conflito europeu desde a Segunda Guerra é atribuída nos bastidores ao ex-ministro das Relações Exteriores e atual assessor especial da Presidência Celso Amorim, que tentou intermediar um acordo nuclear com o Irã no segundo mandato de Lula. A iniciativa não deu certo e ainda irritou EUA. A atual aproximação do mandatário com Putin foi costurada pelo próprio Amorim em encontro com o russo em Moscou, no início do mês. A mesma deferência não foi estendida à Ucrânia, que não recebeu nenhum representante do Brasil.

APROXIMAÇÃO Xi Jinping recepciona Lula em Pequim, dia 14: prestígio e parceria (Crédito:KEN ISHII)

A polêmica se provou contraproducente, pois ofuscou a bem-sucedida viagem de Lula à China, quando o petista foi recebido de braços abertos pelo maior parceiro comercial do Brasil. O governo anunciou acordos de R$ 50 bilhões com os chineses, além de R$ 12,5 bilhões com os Emirados Árabes. Também colocou o petista contra as democracias ocidentais e reavivou sua antiga aproximação com regimes ditatoriais. O apoio ao nicaraguense Daniel Ortega já havia causado constrangimento a Lula quando ele falou a jornalistas espanhois antes da posse. A pecha de amigo de ditadores não combina com alguém que sempre defendeu a democracia no Brasil.

Diego Herrera Carcedo

A rigor, Lula faz um movimento que segue a tradição diplomática brasileira ao defender o multilateralismo e negociar com blocos comerciais em disputa, como EUA, União Europeia e China. Explorar rivalidades em benefício próprio é do jogo, algo praticado universalmente nas relações internacionais. O Brasil depende da Rússia para comprar fertilizantes, por exemplo, e também está ampliando a importação do diesel russo que os europeus estão rejeitando, por um preço mais barato. O País também tem todo o interesse em aumentar as vendas de commodities agrícolas e minerais para a China, assim como ampliar a parceria tecnológica com o gigante asiático (o acordo para um novo satélite sino-brasileiro foi um dos pontos altos da visita de Lula a Pequim).

CRÍTICAS Peter Stano (esq.), porta-voz da União Europeia, e o americano John Kirby reagiram às falas de Lula, que criticou o apoio Ocidental na guerra na Ucrânia (Crédito:Divulgação/ANDREW CABALLERO-REYNOLDS)

Mas indispor-se com os europeus, no momento em que o acordo de Livre Comércio Mercosul-União Europeia está na reta final, parece pouco sagaz. Da mesma forma, é temerário se indispor com os EUA, responsáveis pelo maior volume de investimentos estrangeiros no Brasil. E há também o componente político. Lula agiu bem ao visitar Joe Biden em Washington, em fevereiro, reforçando os laços históricos entre os dois países. Mas desde então parece ter esquecido que o americano teve papel importante ao liderar o reconhecimento internacional à sua vitória enquanto Bolsonaro ameaçava melar o pleito. Ao visitar em Xangai a gigante tecnológica Huawei, que sofre sanções americanas relacionadas a segurança de dados, o chefe do Executivo disse que comparecia ao local para demonstrar que “não tem preconceito contra o povo chinês” e que “ninguém poderá proibir o aprimoramento das relações entre os dois países”. Foi uma menção óbvia aos EUA. Ao prestigiar a posse de Dilma Rousseff no banco dos Brics na mesma cidade, o petista também fez uma longa explanação criticando a predominância do dólar no comércio mundial. É uma declaração de viés mais ideológico do que racional, já que a moeda americana adquiriu esse status por ter mais liquidez e escrutínio, enquanto o yuan segue a lógica do PC chinês. De novo, manifestar preferência a um dos líderes mundiais e criticar o rival pode ter repercussões negativas, além de não se traduzir em resultados práticos.

Diplomacia e riscos

Uma das consequências dessa perda de credibilidade é o possível enfraquecimento do papel brasileiro no encaminhamento da agenda ambiental, lembra Lafer. Outro desdobramento concreto pode ficar estampado já no próximo grande palco de players globais, o encontro do G7 que ocorrerá em maio no Japão. O grupo que reúne algumas das maiores economias do mundo alertou na terça- feira que eventuais aliados da Rússia na guerra da Ucrânia poderão enfrentar “custos severos”. Foi uma demonstração de unidade contra a invasão russa e um recado aparente à China, que é a principal aliada de Putin, mas a mensagem também pode ter mirado o próprio Lula, que havia sido convidado pelo Japão para participar do encontro. O presidente seria uma presença festejada em Hiroshima, mas é considerado uma dúvida para o evento — não confirmou presença.

Se o brasileiro praticou excessos verbais na China, propositais ou sem querer, Fernando Haddad, que estava na comitiva brasileira, atuou de forma firme para aparar arestas. De pronto negou qualquer indisposição com os EUA. Como acontece com a política econômica, o presidente parece confiar em seu ministro da Fazenda para trazer equilíbrio e pragmatismo para a gestão. Interlocutores da política internacional do presidente não escondem o incômodo gerado com os acenos do titular do Planalto à Rússia e à China, mas avaliam que a reação do governo americano foi “exagerada”. A análise dos governistas é que Lula acertou ao levantar a tese de que o financiamento da guerra por parte do Ocidente em nada ajuda a encontrar uma saída para o conflito. No entanto, a forma usada pelo petista para expressar a hipótese foi considerada problemática. Parte dos aliados do presidente atribui a autoria das declarações a Amorim, que tem mostrado não estar em completa sintonia com o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. Ele, de acordo com articuladores políticos do presidente, teria instruído Lula a adotar uma postura de maior neutralidade na guerra, assim como tem conduzido as reações práticas ao conflito.

Divulgação

Não à toa, após todo burburinho provocado pelas declarações, Lula foi aconselhado a manter discrição na agenda com Lavrov. Inicialmente, o cronograma previa que o braço-direito de Putin se encontrasse com o petista no Planalto, mas o endereço mudou para o Palácio da Alvorada, onde o presidente reside. A mudança favoreceu um encontro mais reservado com Lavrov. A reunião durou cerca de 1h30 e terminou sem declarações das partes, diferentemente da agenda cumprida mais cedo pelo integrante do Kremlin com Vieira — oportunidade em que os chanceleres deram declarações indicando o alinhamento entre os dois países. Internamente, governistas têm atuado para minimizar as críticas a Lula pelos “escorregões diplomáticos” e avaliam que o timing do encontro com Lavrov não foi adequado. O lema repetido nos bastidores é de que “atitudes dizem mais do que palavras” e que o governo brasileiro, em todas as oportunidades em que o tema foi levantado, adotou um tom crítico à invasão. Há, também, uma máxima adotada por interlocutores do presidente de que será impossível ao País satisfazer todas as potências internacionais e que sempre haverá declarações incômodas a A ou B, mas que as falas em nada atrapalham as relações diplomáticas brasileiras.

MULTILATERALISMO O presidente Lula é recebido com pompa nos Emirados Árabes Unidos pelo xeique Mohammed bin Zayed al-Nahyan, após a visita à China(acima). Aqui, é recepcionado na Casa Branca pelo presidente norte-americano Joe Biden, em fevereiro (Crédito:WILLIAM VOLCOV)

Sobre a China e o discurso crítico do presidente ao dólar, a justificativa dada por articuladores do Planalto é de que Lula está acenando e privilegiando países que lhe oferecem atualmente mais oportunidades do ponto de vista econômico. O entendimento não é uma exclusividade de governistas apenas. Em entrevista à ISTOÉ, o presidente da Frente Parlamentar Brasil-China e Brics, deputado Fausto Pinato (PP), elogia a postura do presidente. “O presidente está correto. Está privilegiando os interesses do País. A China é o maior parceiro comercial do Brasil e o governo brasileiro vê a oportunidade em agregar valor aos seus produtos agrícolas, de passar por uma industrialização tecnológica e gerar empregos e arrecadação. O governo americano precisa parar de querer ser a grande polícia do mundo”, diz.

O presidente mudou o tom de sua últimas declarações diante da repercussão negativa. Após recepcionar na terça-feira o presidente da Romênia, Klaus Iohannis, país vizinho à Ucrânia que sofre diretamente as consequências humanitárias da guerra, afirmou que o Brasil “condena” a violação territorial da Ucrânia. É um bom sinal, em linha com a tradição do Itamaraty. Nos anos 2000, Lula conquistou em seus dois mandatos uma merecida projeção internacional, que se provou fundamental agora para a retomada das relações externas brasileiras após quatro anos de isolamento e antidiplomacia da gestão Bolsonaro. Mas o mundo ficou mais complexo desde então, com a crescente tensão pela disputa comercial entre os EUA e China e o conflito na Ucrânia, que está levando a uma reorganização geopolítica das alianças globais. O Brasil certamente se beneficia com o prestígio de Lula no exterior. Mas o País pode sair perdendo se o delicado xadrez internacional não for seguido com método e equilíbrio.

Nicaraguan Presidency / AFP
AFINIDADES O ditador nicaraguense Daniel Ortega foi defendido por Lula, enquanto o venezuelano Nicolás Maduro recebeu a visita do assessor da Presidência Celso Amorim (Crédito:Marcelo Garcia/ Palacio Miraflores)

Colaboraram Victor Fuzeira e Denise Mirás